Feriado de finados. Pela primeira vez em 10 anos não chovia, pelo contrário, fazia um calor de mais de 30 graus C de temperatura. Gaardner se encontrava na casa do irmão, Flavio, por conta do manto de tristeza nos seus ombros, sobre o qual Gaardner falaria mais tarde, um dia. Por algum motivo ele sabia que essa grande tristeza se transformaria em grande alegria, em algum momento, mas como todo ser humano, era pequeno e não conseguia enxergar os planos de Deus para sua vida; restava ao homem, Gaardner, confiar em Deus, orar e confiar. Pela tradição e significado do feriado, Gaardner se dispôs a ir ao cemitério e checar se estava tudo em ordem com o túmulo de sua avó, onde já se encontrava seu avô, sua bisavó e seu tio, e havia mais alguém, algum parente um pouco mais distante que sua avó havia permitido ser enterrado ali mas ele não conhecia. Foi ao cemitério para atender um desejo de sua mãe que vivia em outra cidade, próxima cerca de 1h de viagem, uma cidade litorânea.
Lembrando que o manto de grande tristeza o fazia viver como se fora um luto, porque tinha recentemente perdido sua esposa, não que ela tivesse morrido, mas o abandonado, Gardner, trabalho, lar, sonhos, planos, ele viu tudo se desmanchar por conta da desistência da esposa que ele tanto amava, e que atribuía muitos defeitos à depressão que sofria, Gaardner lembrava sempre que viver com uma pessoa é ter uma caixa de moranguinhos onde encontramos frutos bons e frutos ruins, frutos grandes e suculentos e frutos pequenos e amargos, e lembrando de tudo isso, Gaardner resolveu caminhar a pé da casa de seu irmão, sua nova morada, até o cemitério distante cerca de 1 kilômetro dali. Percorreu tranquilamente e pode observar que apenas um quarteirão dividia bem duas classes economicamente distintas; saíra do quarteirão da casa de seu irmão e ao atravessar a grande avenida podia perceber pelo tamanho da padaria, do posto de gasolina, do campus de uma escola particular que parecia não terminar nunca, que tudo era diferente, tudo ostentava algo que ele não vira no quarteirão da casa de seu irmão, onde seus sobrinhos brincavam na rua de triciclos com os vizinhos e podia-se lavar o carro na rua sem qualquer repreensão. Agora, não neste lado do bairro, mas do outro, haviam carros blindados que aceleravam sem precisar mudar de marcha, seguranças olhando para Gaardner como se ele fosse algum suspeito, agentes de trânsito, clubes repletos de pessoas, que Gaardner concluiu se tratar depois de condomínios residenciais, poucas pessoas nas ruas a não ser aquelas que passeavam com seu cãozinho de alguma raça conhecida, enfim, alguns passos e tudo completamente diferente.
Seguiu adiante e logo chegou ao cemitério. Não havia cães nem carrões blindados; muito barulho dos ambulantes na porta de entrada e muita, mas muita gente entrando e saindo do cemitério, gente simples, com família, muitas crianças, cães, só alguns viralatas que pareciam estar acostumados ao local. Adentrou ao cemitério, e pode observar alguns túmulos em geral padronizados na sua metragem, todos enfileirados formando como que um corredor onde algumas crianças corriam brincando descontraidamente. Pode também escutar um som de uma canção tocada por um violonista e a voz de um rapaz cantando mas não parecia ter muita qualidade, parecia uma canção de igreja daquelas que os evangélicos costumam cantar. Gaardner era bom nisso, era cristão e conhecia um bom repertório gospel, mas não conhecia aquela música. Parecia vir da capela do cemitério e para lá se dirigiu lentamente observando tudo à sua volta, as pessoas, os olhares, as crianças, os túmulos frios, alguns abandonados outros sendo cuidados pelas famílias... Ao chegar perto pode ver que se tratava de um culto à frente da fachada da capela do cemtiério porque além do cantor de voz não muito convincente, haviam dois pastores, pelo menos ele concluiu de pronto que se tratavam de dois pastores porque usavam batinas idênticas às dos pastores de sua igreja luterana, inclusive as cores litúrgicas lhe conferiam a similaridade, mas, ao ver a distribuição da santa ceia ao povo, viu que os fiéis apenas comiam o pão e não bebiam do vinho e Gaardner logo mudou sua versão para o evento: era uma missa católica porque na luterana, os fiéis tomam também o vinho além do pão e acreditam estar presentes ali naqueles elementos o corpo e o sangue de Cristo, enquanto que na católica, se ensina a transubstanciação, ou seja, o pão e o vinho são transformados, eles viram sangue e corpo de Cristo mas só o corpo é dado aos fiéis cabendo ao padre beber o vinho que vira sangue no ato.
Havia muita gente e a fila para participar da santa ceia era enorme, se estendia ao longo do corredor principal do cemitério abaixo. Gaardner deixou a missa para trás e seguiu por este corredor até encontrar a quadra 10 e não tardou em encontrar o túmulo de seus avós. Num rápido telefonema pelo celular, a cobrar, informou sua mãe sobre o bom estado do túmulo que tinha uma terra por cima como um jardim com plantas ornamentais bem ao lado de uma árvore, cuja sombra foi aproveitada por Gaardner para descansar um pouco enquanto atualizava as informações para sua mãe pelo celular. Desligado o aparelho, Gaardner ouviu gritos ao longe, pareciam ser de mulheres gritando desesperadas. Não se surpreenderia se fossem gritos de desespero pela perda de um ente querido e aquela hora fosse justamente a hora do enterro, do último adeus ou mesmo a hora de prestar uma homenagem à alguém que morrera recentemente. Mas Gaardner se surpreendeu com o aumento dos gritos e de outras pessoas entrando junto no que ele percebeu ser depois uma discussão. Se espantaria se fosse de fato uma discussão em pleno cemitério, no dia de finados. O jeito era conferir, pois os gritos não paravam, mas aumentavam e uma pequena aglomeração já se podia observar ao longe, dentro do cemitério, porém num campo aberto, diferente de onde ele estava. Sem túmulos, o campo tinha cruzes pelo chão e algumas lápides fincadas na terra além de muitas flores e velas queimando. Gaardner também observou que naquele campo aberto só haviam pessoas muito simples, com a aparència de quem teve ou tem uma vida muito difícil, pessoas de todas as idades, pisando por cima da terra, das lápides fincadas no chão, era tudo muito confuso por ali. Não haviam corredores de cimento, era tudo por terra, no chão batido se viam trilhas de terra feitas pelas pessoas que ali caminhavam, mas não havia qualquer sinal de organização da administração do cemitério. Se dirigiu para a aglomeração cruzando este campo e os gritos eram mais fortes e contínuos. Foi então que viu o inesperado: duas mulheres se pegando diante de uma cova coberta de flores, mas estas flores pareciam estar pisoteadas meio que destruídas. Toda aquela gente ali em volta apoiando apenas uma das lutadoras, parecia gente muito pobre porque Gaardner observava suas roupas, como que as únicas que tinham pra usar no dia-a-dia e também para ir ao cemitério. O escàndalo era absurdo. Quando foram separadas, uma delas se retirou reclamando que ia voltar, em meio aos palavrões, com a roupa toda rasgada, a saia mal posicionada na cintura, o sutiã defendendo com suas forças sua função porque a blusa de cima já estava toda rasgada e perdera sua função no corpo da mulher, uma senhora que aparentava 60 anos e pouco juízo... Impressionado, como a maioria das pessoas que ali estavam presentes, procurou saber do que se tratava e um coveiro em meio a risos perplexos lhe disse que a mulher que permanecia em frente à lápide do morto em questão, tinha ido lá para prestar homenagem ao falecido junto com várias pessoas de sua família. Até aí tudo bem, pensou Gaardner que o interrompera perguntando a respeito da outra mulher que saíra com a roupa toda rasgada prometendo que voltaria. O coveiro riu novamente e disse que se tratava de uma outra mulher que o falecido tivera e, que, pelo jeito, tinha raiva dele porque chegou pisando nas flores que haviam sido colocadas sobre o túmulo na terra pela outra mulher e dizendo que o sujeito nao valia nada, que todos que ali estavam eram vagabundos e a confusão estava armada.
E se foi o coveiro rindo.. Gaardner ficou pensando se, talvez, não fosse a primeira mulher trocada pela segunda e as duas se encontraram aqui, enfim.... uma cena inusitada tal como se tinha visto apenas em filmes de comédia. Agora era uma comédia da vida real... triste, mas real. Para Gaardner, no entanto, aquilo não era uma comédia. Por que aconteceu justamente na ala mais pobre do cemitério!! Por que havia essa diferença de dois setores dentro do cemitério!! Para onde essas almas vão depois da morte não existe diferença. Deus não faz acepção de pessoas. ......................................................................................................................
Vencidos todos estes fatos, Gaardner iniciou sua volta para casa pela mesma caminhada, mesma trajetória, passando pela missa que já estava no finalzinho, Gaardner podia ver nos rostos das pessoas um certo conforto após a missa, talvez pelas palavras do padre, de conforto, Gaardner lembrou de um lema da igreja católica para dias como o de hoje, “saudade sim, tristeza não!” e ele concordava muito com isso e podia ver nos rostos das pessoas um certo conforto com a sensação de que as pessoas ali haviam cumprido seu papel, o de prestar a devida homenagem, curtir momentos de saudade, de boas lembranças com o ente querido que ali jazia. Gaardner podia ver algumas famílias com baldes e escovões limpando as paredes dos túmulos, crianças regando as plantas que se encontravam nos jardins criados em cima dos túmulos, outros ainda sentados pensativos à frente do túmulo, embora tudo faça parte de uma bucólica tradição para alguns, para outros no entanto o evento ia muito além de lembranças, pois alguns acreditam que se pode comunicar com os mortos, o que a bíblia fala e ensina que não é possível, a missa pareceu para Gaardner muito oportuna e ela foi terminando e ficando pra trás e o som barulhento dos ambulantes crescia à medida que Gaardner se projetava para fora do cemitério pelo portão lateral.
Atravessou a praça ainda não concluída pela prefeitura, ganhou rua abaixo em direção à avenida principal, aquela que divide o bairro em duas classes econômicas distintas e seguiu pela calçada irregular pensando em tudo o que observara... Sua mente fervia como água no bule pronta pra fazer um café. Gaardner ficou pensativo e admirado com a igreja católica que fizera ali uma missa, não havia oportunidade melhor do que fazer o que o evangelho manda fazer, ou seja, pregar a palavra, confortar as viúvas, lembrar da salvação, da vida em Cristo. Gaardner andava pela calçada da avenida principal pensando em quantas igrejas faziam isto, aproveitavam este momento, esta oportunidade, quando cruzou com um grupo de pessoas fazendo uma algazarra, todas jovens pareciam estar uniformizadas, com uma faixa na testa, não conseguia ler de longe mas podia identificar na camisa deles o nome “Jesus”. Ao aproximar mais pode ver que se tratava de um grupo que vinha de um encontro na zona norte da cidade dos evangélicos, chamado “marcha para Jesus”. Gaardner lembrou que algumas igrejas lutam há anos por este evento e agora se tornou lei o dia da marcha para Jesus e coincide com o dia de finados. Gaardner lembrou que vira na televisão coberturas e flashes de reportagem sobre o evento, os números acerca de participantes do evento eram, como sempre, desencontrados, muitas bandas evangélicas subiriam ao palco e Gaardner pode identificar um casal de pastores que se autodenominam apóstolo e bispa, presentes no palco e pela TV, Gaardner lembrou que se tratavam dos mesmos que se encontravam presos em outros países por transporte ilegal de dinheiro...
A pergunta que Gaardner fazia agora era outra: Quem de fato neste dia evangelizou!! Os evangélicos nesta marcha ou os católicos nos cemitérios?
Gaardner foi pra casa (que não era a dele).