Um domingo impecável! Era um dia assim que Gaardner sempre quis ter. O sol no topo do domingo que Gaardner desenhara para si. Gostava dos trens, metrô subterrâneo ou de superfície, tanto fazia, importava mesmo era a rígida obediência que os trilhos impunham àquela pesada máquina que preguiçosamente se movia. E lá estava Gaardner, às 6h da manhã indo pegar o metrô para mais um concurso público. Gaardner era concurseiro. E estava especialmente empolgado porque conhecia bem as disciplinas constantes do edital, vislumbrava a possibilidade de ir trabalhar em Brasília, de onde, ouvira falar, as coisas são bem planejadas por lá. Mas sua empolgação aumentara porque iria fazer a prova na associação Campos Salles, no bairro da Lapa, e, para isso, iria pegar o trem na estação da luz. A estação fora toda reformada, recuperada ao seu estilo inglês, era bucólica e charmosa; Gaardner não cansava de olhar para toda aquela arquitetura e de pensar em quanta história aquelas paredes e estruturas guardavam ali. Eram estruturas de madeira e alvenaria que foram testemunhas de tantas coisas, tantos momentos, despedidas, chegadas e o alto comércio que passava por ali rumo à Santos, a cidade portuária. Gaardner pensou em como esses momentos de partida ou chegada são importantes e marcantes na vida; ele próprio estava passando por algo assim... lembrou por um momento de Maria Rita cantando... a vida é um vai-e-vem... recordou Tim Maia.. viveu morreu na minha história... Lembrou-se que, quando tinha por volta de 10 anos, seu avô resolvera fazer uma viagem para o interior e o levou... de trem, claro; e fora ali, bem naquela estação, naquela plataforma, Gaardner nunca esquecera o horário, o trem sairia às 10h12 e acabou saindo pouco depois das 10h40. A estação tem mesmo uma magia, um significado, ainda que simbólico, mas relevante na vida do ser humano... ao menos para Gaardner; tanto que ele lembrara inclusive do horário de partida do trem em que viajou com seu avô!!
E aqueles trilhos!! Gaardner viu deslizar por eles um trem que carregava um número sem fim de vagões carregados de cimento com o peso total timbrado nas laterais dos mesmos: “100 toneladas” !!! E deslizavam suaves como patins no gelo. Aquilo era, para Gaardner, a perfeição. Por que sua vida não andava assim nos trilhos....................................................................................
Ele bem que queria, todos querem... Mas a plataforma estava, como sempre, agitada, afinal, véspera de dia das crianças, muita gente de outras cidades na circunvizinhança vinha de trem para aproveitar o comércio barato da região central da cidade de São Paulo. As linhas de trem interligavam as cidades em torno da grande São Paulo, cidade de Gaardner. O trem chegara e ele tinha de fazer a prova no bairro da Lapa, mas voltaria por ali e, quem sabe, iria até um pouco além para curtir o trem e só depois então, voltaria ao caminho de casa....
Voltou, já passava das 13h, o sol firme, os tijolos enfileirados nas paredes inglesas da estação da Luz brilhavam pelo verniz e o raio do sol, Gaardner reparara que os trens naquele trecho correm no sentido inverso do que correm, por exemplo os carros. Ah, herança londrina, claro! Gaardner queria muito passar nesse concurso, mas, lá no fundo, sabia que seria difícil, os problemas iam sufocá-lo a ponto de não conseguir se sobressair nesta prova. Ainda não desta vez. Ele olhava para a questão e, ao terminar a leitura tinha que ler de novo, e de novo até entender o que diz o enunciado, mas o tempo em média para se responder uma questão em um concurso é de 2,5 minutos. Tudo isso porque o manto da grande tristeza o cobria e pesava sobre seus ombros. A essa altura pode-se dizer que esse manto de tristeza à que se referia sempre Gaardner era o triste acontecimento de sua vida: sua esposa, que ele tanto amava e ainda ama o deixara... talvez o trocara, quem sabe, mas Gaardner falaria sobre isso mais tarde. Decidiu então cumprir o que havia proposto para si mesmo e desceu na plataforma da estação sentando por ali num banco de ripas de madeira, tradição das estações ferroviárias e leu um livro que seu irmão emprestara para ajudá-lo a vencer o sufocamento dos seus problemas. O livro chamava-se “A cabana” e Gaardner gostou muito. Então, chegando o outro trem com destino à Guaianazes, região do extremo leste de São Paulo, Gaardner sabia que aquele era o expresso turístico da companhia de trens e ia direto, sem parada até a um bairro chamado Itaquera e embarcou nesse trem. Sentou à janela e em frente a ele, um casal com uma filha, menina linda, dócil que também observava a janela oposta. O rapaz, simples, permanecia com o braço extendido por sobre os ombros da esposa, sentado ao lado dela, meio que exibindo um troféu que orgulhosamente mostrava e dizia com seu olhar: é meu! De vez em quando mexia com sua filha que se divertia vendo as casinhas passarem, os carros passarem, as pessoas, as nuvens, os postes, os fios. Sua esposa era tão jovem quanto ele, e especialmente bonita, com traços marcantes que destacavam seu rosto e seu olhar era doce e ao mesmo tempo profundo. Gaardner não pode deixar de perceber isso, aliás, ninguém que entrou no vagão deixou de admirar tanta beleza em um rosto pequeno e singelo que mesclava beleza, determinação, satisfação e singeleza. Seus olhares e os de Gaardner se flagraram mais de uma vez, os dele, presos à beleza dela, mas os dela... o que os prendia em Gaardner afinal? Ele estava na janela oposta, de frente para eles refletindo, inculcado, no que se passava na cabeça daquela jovem e bela mamãe. Cada vez que os olhares se encontravam, ambos disfarçavam e rapidamente olhavam para a criança que estava simplesmente vislumbrada inocentemente com o movimento do trem. Gaardner era bem mais velho, e nem se considerava tão bonito, pelo menos não o suficiente para chamar a atenção de uma jovem linda que carregava nos ombros o braço pesado de seu marido que permanecia alheio a tudo isto. Concluiu então que, seguramente, ela se pegava olhando pra ele movida mais pela curiosidade do que por qualquer outra coisa, afinal, o que estaria fazendo um homem grande (1,95m), estilo europeu, alemão pra ser mais exato, num trem indo para uma região periférica, carente e distante da cidade? Mas, no fundo dos seus sentimentos, bem lá no fundo mesmo, Gaardner queria que ela o olhasse achando-o bonito, atraente, queria que os dois pudessem combinar beleza, estilos, pensamentos, gostos e preferências, assim como panela e tampa certa, mas resignou-se e tentou fixar os olhos nas casinhas que passavam pela sua janela do trem. Descobriu então a imagem dela refletida no vidro da janela e viu ali uma chance de poder fazer duas coisas que davam prazer: ver a paisagem e observá-la sem comprometer nada nem ninguém, seria o segredo dele. E não é que ela também descobriu esta alternativa e lá estavam os dois no mesmo feixe de imagem? Vez ou outra eram interrompidos pela filha ou pelo marido dela que, dormindo recaia sobre ela. Mas no que ela estava pensando afinal?