Os sensíveis sofrem mais, mas amam mais e sonham mais.



sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Do ouro ao pó

Do ouro ao pó


Gaardner não tinha o hábito de usar jóias, bijouterias, corrente de ouro ou qualquer penduricalho que o adornasse. Não foi criado assim nem desenvolveu o gosto pela coisa. E é preciso gostar de ouro para lidar com ouro, sua esposa o ensinara isso, mas a simplicidade de Gaardner era notória. Não que quem mexe com ouro não seja simples, mas se faz muita confusão e ouro é significado de riqueza e riqueza não é ligada à simplicidade, então, tem-se uma certa dificuldade em entender que quem gosta de ouro possa ser uma pessoa simples. Mas Gaardner aprendera isso com sua esposa mas não conseguia gostar de ouro; teria falta de ambição? Teria medo de usar algo de valor nesta cidade absurdamente grande, descontrolada e violenta? O fato é que Gaardner não dava muita atenção a estes adornos sejam eles de ouro ou apenas folhados, nem era comum vê-lo andando na conhecida rua do ouro no centro da cidade onde morava. Sua esposa era o oposto. Ela não era deixada ao luxo nem tinha vida de dondoca, pelo contrario, a vida dos dois não era fácil, passavam por dificuldades financeiras mas lutavam juntos sempre e o amor os unia muito nestas horas difíceis. Ela tinha no entanto, gosto pelo dourado, gostava e entendia de peças de ouro como ninguém, Gaardner vivia dizendo para ela trabalhar só com isso. Sabia reconhecer de bate-pronto, uma peça de 18 ou 16 kilates, sabia mesmo as regiões do país que forneciam o ouro de 18 kilates ou de outra qualidade. Sentia o cheiro de cumbuca queimada, quando tentavam empurrar para ela uma bijuteria barata no lugar de uma peça de ouro de qualidade, sem impurezas, que Gaardner teria comprado sem pestanejar mas ela, ah, ela teria literalmente rodado a baiana na frente do vendedor, e olha que ela é filha de baianos, bons baianos. Já haviam combinado entre si que Gaardner não compraria alguma jóia para ela, mas ela escolheria para os dois. O problema é que Gaardner se esquecia de usar e aí o discurso feminista sobre o homem largado corria solto. Gaardner era amado por sua esposa. Certa vez a acompanhava em uma visita àquela rua do ouro no centro da cidade e se divertia ao ver sua esposa discutindo com as vendedoras e balconistas sobre os produtos. Como ele gostava de ver sua esposa o olhar lá do balcão e sorrir com sorriso puro sincero que só ela tinha. Gaardner jamais esquecerá este rosto. Por estarem sem dinheiro não levavam nenhum modelo, mas ela experimentava todos. Nos dedos, no pescoço, até correntinhas para o tornozelo tinha. Ao sair da rua, Gaardner foi trabalhar, seu trabalho ficava ali perto, e sua esposa foi para a estação de metrô de volta para casa. Despediram-se trocaram recomendações e beijos e se foram.
Depois do trabalho, Gaardner, visivelmente cansado, também pegou o metrô na estação próxima ao trabalho e sentou assim que conseguiu uma vaga no trem, não havia muita gente. Era o último vagão onde há um espaço destinado a pessoas portadoras de algum tipo de necessidade especial. Havia particularmente um espaço reservado aos chamados cadeirantes, isto é, os que usam cadeira de rodas para se locomoverem e Gaardner sentado em frente a este espaço pensava no trabalho, no dia, no passeio com sua esposa na rua do ouro...
Cerca de duas estações depois de Gaardner ter embarcado, entrou no mesmo vagão onde estava, um senhor em uma cadeira totalmente especial. Gaardner não tinha visto nada parecido. Parou naquele espaço em frente a ele. Bem vestido, aproximadamente 40 anos de idade, o rapaz estava em uma cadeira mais alta que as comuns, vermelha, totalmente motorizada, elétrica, com duas baterias na parte de baixo, mas o banco era excepcionalmente alto, talvez 1,50m do chão, com três rodas, sendo duas traseiras grandes e uma dianteira pequena que girava para guiar a cadeira, como um volante. Havia um encosto pequeno, mas suficiente para apoio das costas e, à sua direita, um manche, uma espécie de joy-stick, que Gaardner concluiu, espantado, se tratar do comando principal da cadeira, que definitivamente não era uma cadeira comum. Era uma pessoa de estatura média-alta, porte físico forte, sem qualquer aparente deformação física exceto uma coisa que impressionava... A ausência de braços e pernas! Isto mesmo! Gaardner não pode deixar de observar a cena: O cidadão não tinha nenhum dos braços ou pernas. As pernas terminavam logo após o quadril antes mesmo de chegar aos joelhos e os braços mal desciam dos ombros, terminavam antes da manga curta de sua camisa social que vestia. Não parecia ser de nascença. Talvez ele tivesse sofrido algum acidente ou alguma doença o fizera amputar os membros. Ao lado dele uma pasta e era perceptível que o rapaz também voltava do seu trabalho. Parecia ser um vendedor, corretor talvez, um balconista ou atendente do funcionalismo público, não dava para saber exatamente. Mas como ele comandava aquele carrinho ou cadeira, Gaardner nem conseguia imaginar. De repente, lembrou do passeio que fizera com sua esposa pela rua do ouro, experimentando todo tipo de bijuteria, no pescoço, nos dedos, no pulso, no tornozelo, nas orelhas... Mas este homem não tinha dedos para isso, aliás não tinha mãos, quer dizer, não tinha nem braços. Então, sem tirar os olhos do rapaz, apalpou suas pernas e parecia estar sentindo-as como se fosse a primeira vez que tocava com suas mãos as suas próprias pernas e em seguida, pode observar curiosamente o rapaz que ajeitou a cadeira através do comando em forma de joy-stick. Ele o fez com o queixo. Por isso aquele comando era tão alto. Mas foi Gaardner quem ficou de queixo caído. De repente, se flagrou olhando fixamente já por algum tempo o rapaz que tranquilamente olhou para Gaardner e para os demais que estavam a sua volta e cumprimentou a todos com um movimento da cabeça e um sorriso singelo. O rapaz dizia muita coisa com aquele olhar, não precisava dirigir nenhuma palavra.
Gaardner caiu em si e junto com ele todos os demais que estavam no vagão à sua volta, e deixaram de olhar para o rapaz e trataram de recolher cada um ao seu próprio pensamento enquanto o trem seguia; dava pra ouvir os pensamentos de cada um ali presente mas o de Gaardner falava mais alto. Sem dinheiro para comprar as jóias que sua esposa queria lembrou de agradecer a Deus pela saúde plena que os dois colhiam...